Foi errando e acertando que o chef João Rangel criou uma gastronomia com alma e que conta um pouco de sua história em cada prato
“Porém, com muita coragem, eu fui fazendo”. Ainda que essa frase tenha sido dita uma única vez com essas palavras, seu significado esteve fortemente presente em vários momentos da história e resume bem as quase duas horas de conversa com o chef ribeirão-pretano João Rangel. Ele me encontrou no seu restaurante Mesa, um sucesso da gastronomia em Ribeirão Preto e que está sempre com reservas esgotadas, para me contar os caminhos e aventuras que o levaram ao reconhecimento que tem hoje e aos pratos que carregam um pouco da sua personalidade entre os ingredientes.
Autointitulado “mineiro não praticante” – por ser nascido em Ribeirão Preto, mas criado próximo ao “mar de Minas Gerais” –, foi ao lado da avó, em Escarpas do Lago (MG), que começou seu interesse pela culinária. Veja bem: culinária. Diferente de gastronomia e longe de estarmos falando de “um sonho de infância de se tornar chef”.
“Nós éramos 11 netos e passávamos as férias escolares com ela. E o que eu via ali era culinária. Tanto que a imagem que tenho de cozinha é da minha avó com turbante e avental, toda suja de farinha. E, eu, sempre em volta, beliscando. Comida era o jeito que ela tinha de mostrar o amor pelos netos”, lembrou, explicando que, desde então, sempre relacionou comida com afeto e fartura. Afinal, a avó Maria Rita Rangel só cozinhava se fosse para todo mundo ainda levar para casa uma marmita: “Também é por isso que faço questão que os pratos aqui do Mesa sejam fartos. Não admito fazer um prato que a pessoa termine e ainda tenha fome. É por conta da minha avó”.
Só que essas mensagens deixadas por dona Maria Rita só foram ser interpretadas mais para frente, já que, ali, ainda jovem, o ato de cozinhar não chamava sua atenção; seu interesse era apenas em comer as deliciosas receitas, como a macarronada de domingo e a galinhada.
À caça de oportunidades
Já crescido, João se formou para tomar conta do legado da família – e, aqui, engana-se quem pensa que falo do livro de receitas da avó. Com o diploma de Administração nas mãos, ele foi trabalhar nos negócios familiares no ramo ótico, uma atividade iniciada pelo avô na década de 1970.
Porém, em determinado momento, sentiu que precisava expandir seus horizontes – sentimento que seria uma constante em sua vida adulta. Sem se desconectar completamente da empresa, João, primeiro, trabalhou com a Bolsa de Valores, mas logo viu que aquela “sangria desatada” não era para ele. Então, foi fazer um intercâmbio nos Estados Unidos, realizando um sonho antigo e demonstrando uma das suas principais características: a coragem. “Sempre tive a mentalidade de achar oportunidade nos perrengues. Era 2008. Se todo mundo estava assustado com a crise, era para lá que eu tinha que ir, porque, com certeza, teria uma oportunidade. Fui para ficar quatro meses e fiquei um ano”.
A culinária que, por sua vez, continuava como uma mera coadjuvante à espera do estrelato começou a ganhar mais relevância, a princípio de um jeito não planejado. Deslumbrado com todos aqueles fast foods que não tinham no Brasil, ele acabou adquirindo uma infecção por excesso de gordura no sangue, que exigiu uma readequação alimentar. Assim, com quase nenhuma experiência nas panelas, foi o momento de começar a se virar, à base de livros de culinária e, claro, com ajuda da avó.
“Eu ligava para ela e perguntava: ‘vó, como que faz arroz? Como faz feijão? Como faz frango de panela? Ela foi me ensinando e eu fui fazendo, começando a me arriscar mais. Sempre fui um cara muito despojado e que se adapta ao que vive. Então, ali eu comecei a gostar, até porque entendi o sentimento que minha avó tinha, que cozinhando ela expressava o amor pela família, o cuidado, o zelo. Quando as palavras não expressam, a comida é sempre o melhor elogio”, define. Era a primeira faísca gastronômica.
De volta ao Brasil, o legado empresarial da família chamava, fazendo João ir ajudar o pai com a abertura de uma nova ótica, cujo projeto previa um café anexo, para servir o básico e, de preferência, com produtos terceirizados, a fim de ser prático. Para o então administrador, foi a oportunidade de colocar uma pitada daquela nova paixão que começava a ganhar forma. “Eu via que as pessoas queriam algo a mais e comecei a colocar umas ideias em prática. Comecei a brincar, por conta. Fazia um crepe, um risoto, uma sobremesa. Coloquei até um doce que eu aprendi lá no Paraná, o Pavê de Nata, que é como se fosse um Tiramisú combinado com torta holandesa e creme de nata, em vez de mascarpone. Fica maravilhoso. Hoje sirvo no Mesa. Nessas brincadeiras, comecei a ver que dava certo”. Para fazer dar certo, ele continuava ligando para avó, que foi quem deu o tom da culinária servida no café.
Cada vez mais dentro da cozinha
Não demorou muito tempo para o chef iniciante passar mais tempo no café que na ótica. Mesmo assim, financeiramente, a energia colocada ali não estava sendo convertida em lucro – sobrava vontade, faltava organização. Como ele mesmo descreve, o cardápio parecia o segundo testamento da bíblia de tão grande. Isso acontecia muito porque ele tentava atender prontamente a todos os pedidos. Da mesma forma que a frase que resumiu nossa conversa, com coragem, ele foi fazendo.
Até que um episódio colocou uma nova oportunidade no seu caminho, ao mesmo tempo em que lhe deu uma importante lição: ao lhe pedir um hambúrguer, um amigo o repreendeu a ter o pedido atendido com um industrializado, comprado em supermercado. “Eu nunca tinha imaginado a possibilidade de eu mesmo fazer, mas, naquele momento, também lembrei de tudo que tinha experimentado nos Estados Unidos. Aí fui, testei, deu certo”.
De forma alguma, a continuidade dessa história foi uma linha reta – envolve, entre outros episódios, o fechamento do café, o desligamento dos negócios da família, um plano de negócio para outra ótica e muitas tentativas e erros –, mas a ideia do hambúrguer acabou se convertendo em uma das primeiras hamburguerias artesanais de Ribeirão Preto, a Bendito Burger, aberta com outros quatro sócios.
Além do ponto fixo, ela começou a ser levada para todos os festivais gastronômicos que estavam emergindo por meio de um Food Truck. Em um único dia de evento, João fez e vendeu mais de 200 hambúrgueres e, mais uma vez, mostrou que perrengue para ele tinha outro valor. “Foi muito divertido. Ali foi acesa uma chama de que trabalhar com gastronomia é divertido. Foi quando pensei ‘é isso!’. Porque eu ia para ótica, passava três horas, e já não me sentia bem. Na hamburgueria, trabalhava 12 horas direto e era feliz”.
A transformação em chef
Mesmo em estado de graça, o corpo cansa – e João começou a cansar daquele ritmo frenético de festivais. Além disso, ele queria dar mais personalidade aos lanches, mas não tinha resposta dos clientes. Na rua, o pessoal queria mais o básico. Ele, por outro lado, queria ser responsável por uma gastronomia que tivesse história, um significado, como tinha para a sua avó.
A virada de chave definitiva aconteceu durante sua lua de mel, no Peru, quando conheceu o restaurante de Gastón Acurio, renomado chef de cozinha peruano: “Eu pirei. Até hoje é muito nítida minha imagem comendo porco com mandioca e uma salada de rúcula. Algo que, para mim, eu comia em Minas Gerais, mas deu para aquele chef uma estrela Michelin. Se ele podia, eu podia. E queria”.
Nesse ponto da história do futuro chef, começou uma saga de descoberta e aprendizados, porque João fazia muita questão de aprender, de tudo e com todos. Junto com a faculdade de Administração e uma pós em Gestão de Pessoas, ele fez um curso de técnicas básicas de cozinha no Senac, mentoria de negócios no Sebrae, e, principalmente, se infiltrou nas cozinhas paulistanas que mais admirava. O melhor exemplo foi sua passagem pelo Maní, de Helena Rizzo, onde conseguiu estagiar graças a um misto de competência, insistência e cara de pau. “Imprimimos meu currículo, eu e minha esposa, e fomos almoçar lá. Nisso, comi e, no fim, fui à cozinha e falei que havia gostado, mas que alguma coisinha não tinha me chamado atenção. Meio que para ‘dar uma letra’ para alguém importante”.
A estratégia ousada deu certo. Depois do restaurante no Jardim Paulistano, também teve Jamile e Ristorantino – todas experiências nas quais, apesar de ser estagiário, não se sentia como um. Tanto que, mais de uma vez, recebeu oferta de trabalho fixo. Mas era hora de retornar a Ribeirão, pois sua esposa estava grávida e o Matteo já estava para chegar.
Das várias cozinhas ao Mesa
De novo na sua cidade natal, a vida parecia um livro em branco. João conta que não sabia direito que direção queria seguir, embora soubesse direitinho o que não queria. Por isso, se desfez das sociedades em que participava e mergulhou de cabeça naquele mundo que agora tinha certeza que era a sua paixão. O Mesa, esse sucesso que hoje podemos frequentar, brilhou pela primeira vez no fim desse túnel.
Intercalando com cursos, workshops e uma mente criativa que pulsava forte como nunca antes, o primeiro passo foi usar seus conhecimentos para fazer jantares particulares na casa de amigos. O burburinho do sabor daquela comida foi se espalhando. Logo, eram pequenos jantares, para 8 pessoas. Depois, 12, depois 18. Ele, “na coragem, ia fazendo”. Sempre na raça e na paixão, mas ainda com pouca organização. “Quando a pessoa é criativa, ela é muito desorganizada”, justifica.
Foi, então, preciso parar, tomar um fôlego para, mais uma vez, descobrir o caminho a seguir: chamando-o de “Jardim Secreto”, ele achou um lugar perfeito para fazer aqueles jantares intimistas com um pouco mais de estrutura, mais diversão e menos pressão. “Queria começar devagar. Então, propus um jantar-teste com três casais. Fiz um menu na minha cabeça e coloquei à prova. Parecia o jantar do século para mim. Que frio na barriga! Felizmente, só recebi comentários positivos”, recorda. O cardápio era composto por um ceviche de coco com esferas de suco de maracujá e lagostim na cachaça, um pato confitado com nhoque de pinhão, e, de sobremesa, um merengue com chocolate meio amargo. “Super simples, mas direto e diferente. Todo mundo pirou”.
Como toda a sua história até esse ponto, a transformação no restaurante não se deu de uma hora para outra. E a coragem de João nem sempre foi suficiente, como ele mesmo destaca. “Cada hora era um desafio diferente e eu não acreditava em mim. Quem acreditava era a minha esposa. Ela sempre falava que eu estava me preparando para algo grande”. Ela não estava errada.
A grandiosidade veio por caminhos tortuosos, precisando desviar de uma pandemia, três infecções por Covid, se adaptar como um delivery, se apresentar como buffet, transpor um restaurante inundado por um projeto mal-acabado, resolver dívidas, e conviver com as obrigações de um pai. Mas a grandiosidade tinha sabor e tinha alma, então frutificou.
“Os dois anos de pandemia foram um momento muito importante para mim, porque eu pude passar uma borracha em toda a minha história na gastronomia e fazer o que eu realmente amava. Porque, até então, eu repetia muito o que eu via nos outros restaurantes, não tinha a minha gastronomia”. Mas ali, entre perrengues, ele descobriu e definiu sua gastronomia como brasileira contemporânea, com técnicas internacionais.
O futuro a João pertence
Como sempre, passo a passo, o Mesa foi pegando ritmo e sendo reconhecido pela experiência e atendimento sem igual que oferecia e ainda oferece. Os hambúrgueres iniciais, herança daquele primeiro chef João, foram substituídos por pratos originais, aí vieram as cartas de drinks e vinhos; depois, as sobremesas. Tudo elaborado junto aos cozinheiros, à equipe que se colocava em cada composição. “Como eu não tenho a formação gastronômica, não vim com a cultura do chef que tem ego inflado. Eu quero muito que os cozinheiros participem da criação, deem pitacos, isso para mim é muito importante. O Mesa é tão forte hoje por conta disso. Foi um crescimento orgânico e coletivo”.
E quando fala do coletivo, João lembra mais uma vez da avó, com quem ainda troca figurinhas. “Tem uma torta de banana que sempre preciso falar com ela antes de fazer. Ela me explica 10 vezes, eu acho que entendo, aí eu faço, mostro para ela, e ela fala que não é assim. Mas sempre fica bom”, revela. Inclusive, mesmo na casa dos 80 anos, dona Maria Rita nunca deixou de cozinhar. Assim como ela, a esposa de João, Janaína Rangel, com quem cria duas filhas e um filho, foi um apoio fiel e uma base essencial. “Sempre digo: a minha avó foi minha musa inspiradora; a minha esposa foi minha musa motivadora”.
Deixando um pouco de sua alma em cada receita, João Rangel segue com muitos planos para o futuro, mostrando que, com alma e cheio de coragem, continuará fazendo. “Hoje, estou mais como chefe executivo da casa. Mesmo assim, pretendo ampliar o restaurante, abrir mais uma ou duas casas e, quem sabe, uma linha de buffet para atender na casa das pessoas. Também espero organizar um livro de receitas da minha avó, com a intenção de documentar toda aquela afetividade”, planeja.
“Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto é realidade. Sou muito grato à todos que em algum momento contribuíram para eu chegar até aqui. Gratidão a Deus antes de tudo por me dar saúde e oportunidade em exercer a minha função. À minha esposa, que foi a 1ª pessoa que viu o meu talento e me apoiou, emocionalmente e financeiramente; aos meus filhos – Matteo, Antonella e Pietra –, por dividirem o tempo deles com os meus sonhos na gastronomia. Também sou grato à família Barros Cruz, que sempre acreditou nos meus jantares e, em especial, meu sogro, Augusto Penna de Barros Cruz, que me incentivou financeiramente durante meu tempo em São Paulo; ao Dr. Rui Flávio Chúfalo Guião, meu 1º cliente em Ribeirão; a Lidia Muradás, que me alugou o 1º lugar para fazer os jantares secretos; a Marcela Neves, em me dar a oportunidade em entrar no mundo dos grandes eventos; a Cacá Degani, por me ajudar a encontrar um espaço para o Mesa; e à equipe do Mesa, que hoje executa o meu sonho de maneira reluzente!”
João Rangel: o sabor de quem coloca coragem à mesa
Foi errando e acertando que o chef João Rangel criou uma gastronomia com alma e que conta um pouco de sua história em cada prato
“Porém, com muita coragem, eu fui fazendo”. Ainda que essa frase tenha sido dita uma única vez com essas palavras, seu significado esteve fortemente presente em vários momentos da história e resume bem as quase duas horas de conversa com o chef ribeirão-pretano João Rangel. Ele me encontrou no seu restaurante Mesa, um sucesso da gastronomia em Ribeirão Preto e que está sempre com reservas esgotadas, para me contar os caminhos e aventuras que o levaram ao reconhecimento que tem hoje e aos pratos que carregam um pouco da sua personalidade entre os ingredientes.
Autointitulado “mineiro não praticante” – por ser nascido em Ribeirão Preto, mas criado próximo ao “mar de Minas Gerais” –, foi ao lado da avó, em Escarpas do Lago (MG), que começou seu interesse pela culinária. Veja bem: culinária. Diferente de gastronomia e longe de estarmos falando de “um sonho de infância de se tornar chef”.
“Nós éramos 11 netos e passávamos as férias escolares com ela. E o que eu via ali era culinária. Tanto que a imagem que tenho de cozinha é da minha avó com turbante e avental, toda suja de farinha. E, eu, sempre em volta, beliscando. Comida era o jeito que ela tinha de mostrar o amor pelos netos”, lembrou, explicando que, desde então, sempre relacionou comida com afeto e fartura. Afinal, a avó Maria Rita Rangel só cozinhava se fosse para todo mundo ainda levar para casa uma marmita: “Também é por isso que faço questão que os pratos aqui do Mesa sejam fartos. Não admito fazer um prato que a pessoa termine e ainda tenha fome. É por conta da minha avó”.
Só que essas mensagens deixadas por dona Maria Rita só foram ser interpretadas mais para frente, já que, ali, ainda jovem, o ato de cozinhar não chamava sua atenção; seu interesse era apenas em comer as deliciosas receitas, como a macarronada de domingo e a galinhada.
À caça de oportunidades
Já crescido, João se formou para tomar conta do legado da família – e, aqui, engana-se quem pensa que falo do livro de receitas da avó. Com o diploma de Administração nas mãos, ele foi trabalhar nos negócios familiares no ramo ótico, uma atividade iniciada pelo avô na década de 1970.
Porém, em determinado momento, sentiu que precisava expandir seus horizontes – sentimento que seria uma constante em sua vida adulta. Sem se desconectar completamente da empresa, João, primeiro, trabalhou com a Bolsa de Valores, mas logo viu que aquela “sangria desatada” não era para ele. Então, foi fazer um intercâmbio nos Estados Unidos, realizando um sonho antigo e demonstrando uma das suas principais características: a coragem. “Sempre tive a mentalidade de achar oportunidade nos perrengues. Era 2008. Se todo mundo estava assustado com a crise, era para lá que eu tinha que ir, porque, com certeza, teria uma oportunidade. Fui para ficar quatro meses e fiquei um ano”.
A culinária que, por sua vez, continuava como uma mera coadjuvante à espera do estrelato começou a ganhar mais relevância, a princípio de um jeito não planejado. Deslumbrado com todos aqueles fast foods que não tinham no Brasil, ele acabou adquirindo uma infecção por excesso de gordura no sangue, que exigiu uma readequação alimentar. Assim, com quase nenhuma experiência nas panelas, foi o momento de começar a se virar, à base de livros de culinária e, claro, com ajuda da avó.
“Eu ligava para ela e perguntava: ‘vó, como que faz arroz? Como faz feijão? Como faz frango de panela? Ela foi me ensinando e eu fui fazendo, começando a me arriscar mais. Sempre fui um cara muito despojado e que se adapta ao que vive. Então, ali eu comecei a gostar, até porque entendi o sentimento que minha avó tinha, que cozinhando ela expressava o amor pela família, o cuidado, o zelo. Quando as palavras não expressam, a comida é sempre o melhor elogio”, define. Era a primeira faísca gastronômica.
De volta ao Brasil, o legado empresarial da família chamava, fazendo João ir ajudar o pai com a abertura de uma nova ótica, cujo projeto previa um café anexo, para servir o básico e, de preferência, com produtos terceirizados, a fim de ser prático. Para o então administrador, foi a oportunidade de colocar uma pitada daquela nova paixão que começava a ganhar forma. “Eu via que as pessoas queriam algo a mais e comecei a colocar umas ideias em prática. Comecei a brincar, por conta. Fazia um crepe, um risoto, uma sobremesa. Coloquei até um doce que eu aprendi lá no Paraná, o Pavê de Nata, que é como se fosse um Tiramisú combinado com torta holandesa e creme de nata, em vez de mascarpone. Fica maravilhoso. Hoje sirvo no Mesa. Nessas brincadeiras, comecei a ver que dava certo”. Para fazer dar certo, ele continuava ligando para avó, que foi quem deu o tom da culinária servida no café.
Cada vez mais dentro da cozinha
Não demorou muito tempo para o chef iniciante passar mais tempo no café que na ótica. Mesmo assim, financeiramente, a energia colocada ali não estava sendo convertida em lucro – sobrava vontade, faltava organização. Como ele mesmo descreve, o cardápio parecia o segundo testamento da bíblia de tão grande. Isso acontecia muito porque ele tentava atender prontamente a todos os pedidos. Da mesma forma que a frase que resumiu nossa conversa, com coragem, ele foi fazendo.
Até que um episódio colocou uma nova oportunidade no seu caminho, ao mesmo tempo em que lhe deu uma importante lição: ao lhe pedir um hambúrguer, um amigo o repreendeu a ter o pedido atendido com um industrializado, comprado em supermercado. “Eu nunca tinha imaginado a possibilidade de eu mesmo fazer, mas, naquele momento, também lembrei de tudo que tinha experimentado nos Estados Unidos. Aí fui, testei, deu certo”.
De forma alguma, a continuidade dessa história foi uma linha reta – envolve, entre outros episódios, o fechamento do café, o desligamento dos negócios da família, um plano de negócio para outra ótica e muitas tentativas e erros –, mas a ideia do hambúrguer acabou se convertendo em uma das primeiras hamburguerias artesanais de Ribeirão Preto, a Bendito Burger, aberta com outros quatro sócios.
Além do ponto fixo, ela começou a ser levada para todos os festivais gastronômicos que estavam emergindo por meio de um Food Truck. Em um único dia de evento, João fez e vendeu mais de 200 hambúrgueres e, mais uma vez, mostrou que perrengue para ele tinha outro valor. “Foi muito divertido. Ali foi acesa uma chama de que trabalhar com gastronomia é divertido. Foi quando pensei ‘é isso!’. Porque eu ia para ótica, passava três horas, e já não me sentia bem. Na hamburgueria, trabalhava 12 horas direto e era feliz”.
A transformação em chef
Mesmo em estado de graça, o corpo cansa – e João começou a cansar daquele ritmo frenético de festivais. Além disso, ele queria dar mais personalidade aos lanches, mas não tinha resposta dos clientes. Na rua, o pessoal queria mais o básico. Ele, por outro lado, queria ser responsável por uma gastronomia que tivesse história, um significado, como tinha para a sua avó.
A virada de chave definitiva aconteceu durante sua lua de mel, no Peru, quando conheceu o restaurante de Gastón Acurio, renomado chef de cozinha peruano: “Eu pirei. Até hoje é muito nítida minha imagem comendo porco com mandioca e uma salada de rúcula. Algo que, para mim, eu comia em Minas Gerais, mas deu para aquele chef uma estrela Michelin. Se ele podia, eu podia. E queria”.
Nesse ponto da história do futuro chef, começou uma saga de descoberta e aprendizados, porque João fazia muita questão de aprender, de tudo e com todos. Junto com a faculdade de Administração e uma pós em Gestão de Pessoas, ele fez um curso de técnicas básicas de cozinha no Senac, mentoria de negócios no Sebrae, e, principalmente, se infiltrou nas cozinhas paulistanas que mais admirava. O melhor exemplo foi sua passagem pelo Maní, de Helena Rizzo, onde conseguiu estagiar graças a um misto de competência, insistência e cara de pau. “Imprimimos meu currículo, eu e minha esposa, e fomos almoçar lá. Nisso, comi e, no fim, fui à cozinha e falei que havia gostado, mas que alguma coisinha não tinha me chamado atenção. Meio que para ‘dar uma letra’ para alguém importante”.
A estratégia ousada deu certo. Depois do restaurante no Jardim Paulistano, também teve Jamile e Ristorantino – todas experiências nas quais, apesar de ser estagiário, não se sentia como um. Tanto que, mais de uma vez, recebeu oferta de trabalho fixo. Mas era hora de retornar a Ribeirão, pois sua esposa estava grávida e o Matteo já estava para chegar.
Das várias cozinhas ao Mesa
De novo na sua cidade natal, a vida parecia um livro em branco. João conta que não sabia direito que direção queria seguir, embora soubesse direitinho o que não queria. Por isso, se desfez das sociedades em que participava e mergulhou de cabeça naquele mundo que agora tinha certeza que era a sua paixão. O Mesa, esse sucesso que hoje podemos frequentar, brilhou pela primeira vez no fim desse túnel.
Intercalando com cursos, workshops e uma mente criativa que pulsava forte como nunca antes, o primeiro passo foi usar seus conhecimentos para fazer jantares particulares na casa de amigos. O burburinho do sabor daquela comida foi se espalhando. Logo, eram pequenos jantares, para 8 pessoas. Depois, 12, depois 18. Ele, “na coragem, ia fazendo”. Sempre na raça e na paixão, mas ainda com pouca organização. “Quando a pessoa é criativa, ela é muito desorganizada”, justifica.
Foi, então, preciso parar, tomar um fôlego para, mais uma vez, descobrir o caminho a seguir: chamando-o de “Jardim Secreto”, ele achou um lugar perfeito para fazer aqueles jantares intimistas com um pouco mais de estrutura, mais diversão e menos pressão. “Queria começar devagar. Então, propus um jantar-teste com três casais. Fiz um menu na minha cabeça e coloquei à prova. Parecia o jantar do século para mim. Que frio na barriga! Felizmente, só recebi comentários positivos”, recorda. O cardápio era composto por um ceviche de coco com esferas de suco de maracujá e lagostim na cachaça, um pato confitado com nhoque de pinhão, e, de sobremesa, um merengue com chocolate meio amargo. “Super simples, mas direto e diferente. Todo mundo pirou”.
Como toda a sua história até esse ponto, a transformação no restaurante não se deu de uma hora para outra. E a coragem de João nem sempre foi suficiente, como ele mesmo destaca. “Cada hora era um desafio diferente e eu não acreditava em mim. Quem acreditava era a minha esposa. Ela sempre falava que eu estava me preparando para algo grande”. Ela não estava errada.
A grandiosidade veio por caminhos tortuosos, precisando desviar de uma pandemia, três infecções por Covid, se adaptar como um delivery, se apresentar como buffet, transpor um restaurante inundado por um projeto mal-acabado, resolver dívidas, e conviver com as obrigações de um pai. Mas a grandiosidade tinha sabor e tinha alma, então frutificou.
“Os dois anos de pandemia foram um momento muito importante para mim, porque eu pude passar uma borracha em toda a minha história na gastronomia e fazer o que eu realmente amava. Porque, até então, eu repetia muito o que eu via nos outros restaurantes, não tinha a minha gastronomia”. Mas ali, entre perrengues, ele descobriu e definiu sua gastronomia como brasileira contemporânea, com técnicas internacionais.
O futuro a João pertence
Como sempre, passo a passo, o Mesa foi pegando ritmo e sendo reconhecido pela experiência e atendimento sem igual que oferecia e ainda oferece. Os hambúrgueres iniciais, herança daquele primeiro chef João, foram substituídos por pratos originais, aí vieram as cartas de drinks e vinhos; depois, as sobremesas. Tudo elaborado junto aos cozinheiros, à equipe que se colocava em cada composição. “Como eu não tenho a formação gastronômica, não vim com a cultura do chef que tem ego inflado. Eu quero muito que os cozinheiros participem da criação, deem pitacos, isso para mim é muito importante. O Mesa é tão forte hoje por conta disso. Foi um crescimento orgânico e coletivo”.
E quando fala do coletivo, João lembra mais uma vez da avó, com quem ainda troca figurinhas. “Tem uma torta de banana que sempre preciso falar com ela antes de fazer. Ela me explica 10 vezes, eu acho que entendo, aí eu faço, mostro para ela, e ela fala que não é assim. Mas sempre fica bom”, revela. Inclusive, mesmo na casa dos 80 anos, dona Maria Rita nunca deixou de cozinhar. Assim como ela, a esposa de João, Janaína Rangel, com quem cria duas filhas e um filho, foi um apoio fiel e uma base essencial. “Sempre digo: a minha avó foi minha musa inspiradora; a minha esposa foi minha musa motivadora”.
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